Artigo de Vania Martinss, companheira da MMM de Portugal
O Médio Oriente, uma demarcação geopolítica construída pelo Ocidente, tem sido representado como uma zona de conflitos constantes, processos de islamização, berço de terroristas e povos e culturas opressoras. Esta imagem tem sido reforçada pelas histórias que nos chegam diariamente sobre o tratamento das mulheres na região.
Este discurso, que apenas refere as realidades nacionais e as manifestações culturais locais do patriarcado como geradoras de opressão de género e desigualdade, apaga da história o papel da colonização europeia, os acordos entre Inglaterra e França no pós-guerra que criaram os estados-nação que conhecemos hoje na região, a importação de códigos penais e modelos governamentais dos países colonizadores e as políticas imperialistas ocidentais que ainda hoje assombram o Médio Oriente.
A religião nos processos de construção dos estados-nação, em particular o Islamismo, foi vista como um veículo que poderia reforçar a identidade cultural e simultaneamente resistir à colonização ocidental, maioritariamente de raiz cristã. Neste retorno ao Islão, o papel da mulher torna-se fundamental já que a ela lhe é atribuída a responsabilidade de representar a honra nacional e como tal, comportar-se de forma modesta e honrada. Embora o conceito de honra se baseie em comportamentos sociais apropriados (Stewart, 2013), rapidamente se tornou num instrumento para controlar a sexualidade das mulheres.
Os códigos de Honra e Vergonha (honour and shame systems), presentes em todas as sociedades, aliados às interpretações mais restritas do Islão que vêem o papel da mulher e do homem como complementares, permitiu aos estados a criação de diferentes graus de controlo sobre a mulher e de contenção de atos de rebelião, ameaçando as mulheres com castigos e privilegiando as estruturas patriarcais, enquanto o papel do estado como guardião da nação sai reforçado. Estes códigos são também uma forma de negar direitos básicos às mulheres criando assim processos parciais de cidadania.
A manutenção de estruturas patriarcais como os sistemas de tutela (guardianship), que reconhecem as mulheres apenas como meros membros de unidades familiares e promovem a sua infantilização, levou a que as mulheres reconhecessem a falta de proteção do estado-nação e vissem as relações familiares como o único meio de a garantir, submentendo-se à vontade familiar. A submissão da mulher à autoridade dos homens na família equivale à pureza sexual exigida e ao mesmo tempo providencia a imagem da mulher modesta que carrega a honra da nação. As mulheres que tentam resistir a esta opressão são vistas como transgressoras, tendo que ser corrigidas.
Esta conjuntura, utilizada em muitos dos processos nacionalistas que tiveram lugar mundialmente sob variadíssimas formas, auxilia na manutenção da ordem social e passa a mensagem de que as mulheres devem seguir as regras ou sujeitar-se aos sistemas de correção, perpetuando e legitimando a violência contra a mulher no seio da família e da sociedade em geral. As mulheres são vistas como sujeitos que necessitam de vigilância constante, assegurando assim não só a manutenção das conceções normativas de feminilidade e masculinidade mas também de identidade nacional.
A construção de identidades nacionais homogéneas é um processo que obriga sempre à criação de mitos e lendas nacionais para passar a ideia de uma história comum, de um inimigo comum que quer destruir a pátria e apoderar-se dos recursos, criando uma missão coletiva de proteção que geralmente recolhe apoio popular, enaltece o orgulho nacional e legitimiza agressões. Num contexto tribal, multi-étnico e multi-religioso como o Médio Oriente, a destruição de identidades comunitárias e a assimilação forçada levaram à adoção de políticas tais como o panarabismo e a arabização, assim como o sectarismo religioso e a limpeza étnica das minorias através de processos de criminalização da resistência e práticas de genocídio, estas últimas sendo práticas seguidas em diversas partes do mundo.
Países como o Iraque e a Turquia, numa tentativa de construir uma identidade nacional homogénea e manter a sua unidade geográfica, particularmente em territórios ocupados por minorias étnicas e ricos em recursos naturais, adotaram mecanismos de assimilação forçada que suprimem a diversidade dos idiomas, trajes e costumes das populações da região, visando particularmente a maior nação sem estado, o povo curdo. Estes mecanismos levaram ao surgimento de revoltas e à organização política e militar do povo curdo, liderada por chefes tribais e religiosos, refletindo a organização da sociedade curda em clãs sustentados em estruturas patriarcais e que resultaram na exclusão das mulheres curdas quer da sociedade, quer do movimento nacionalista inicialmente, mesmo que o objectivo final fosse a construção de uma nação curda da qual as mulheres também fariam parte. As mulheres curdas eram também vistas como meros membros de unidades familiares que se deveriam submeter às regras estabelecidas pelos homens da família e comunidade e honrar a sua nação, ainda que inexistente, comportando-se de forma modesta.
Esta visão da mulher curda como sujeito passivo das lutas nacionalistas e como representativa da honra da nação Curda levou à legitimação da violência contra as mulheres, especialmente a violência sexual, numa sociedade que estigmatizava em grande medida a violação, requerendo elevados níveis de coerção e implementação de aparelhos ideológicos do estado que visava a desumanização destas mulheres (Kandiyoti, 2013; Al-Ali, 2016). A violência sexual, profundamente ideológica, tinha a dupla função de humilhar homens e mulheres da comunidade devido aos códigos de honra sociais e de recrutar soldados para engrossar as fileiras do exército, já que a violação é vista como um produto inevitável da guerra.
As mulheres curdas tiveram por isso de travar uma batalha em várias frentes, combatendo não só a opressão do seu povo dentro dos estados-nação, mas também o sexismo e misoginia dentro do movimento nacionalista Curdo e a opressão no seio familiar. Desde o aparecimento do Estado Islâmico, as mulheres Curdas tiveram também de garantir a sua própria proteção e criar infraestruturas em países destruídos pela guerra, enquanto enfrentam as críticas de movimentos feministas ocidentais sobre a instrumentalização das suas lutas, que discutirei mais à frente.
O encontro das mulheres curdas com o nacionalismo no contexto do Médio Oriente
O Curdistão estende-se pelas fronteiras da Síria, Turquia, Irão e Iraque, países onde está integrado, albergando quase 30 milhões de curdos e curdas, tornando o povo Curdo na maior nação do mundo sem um estado reconhecido. A maioria da população Curda situa-se no Iraque e Turquia, países que integraram grandes partes do território do Curdistão, com áreas mais pequenas tomadas pelos estados Sírio e Iraniano.
O povo curdo tem um forte orgulho na sua identidade cultural e étnica. E embora na sua maioria pratiquem o Islão, e historicamente assentassem as suas comunidades na região da Mesopotâmia, não se consideram árabes. Contribuem assim para a grande diversidade étnica que existe hoje no Médio Oriente. O que contribui para a unidade do povo curdo, apesar da sua heterogeneidade, é o sentimento de solidariedade formado pela ideia de uma história ancestral e língua comum, ainda que com diferentes dialetos. Para esta unidade também contribuiu o facto de que os Curdos tiveram, durante um breve período, um estado-nação próprio com limites e fronteiras definidas, o que permitiu aos movimentos nacionalistas reclamar a independência do território.
Existem relatos exatos sobre a identidade curda desde o século XVI, através do livro Serefname, escrito por Serefhan Bitlisi, onde ele claramente descreve o que significa ser curdo e o papel crucial que as comunidades tribais têm na sociedade curda, sendo que uma pessoa sem filiação tribal era considerada não-curda (Akman, 2002).
O desmantelamento do império Otomano, onde os curdos viviam maioritariamente com relativa liberdade e respeito pelos seus usos, costumes e dialetos, após a I Guerra Mundial e a assinatura do Tratado de Sevrés, deu ao povo curdo a oportunidade de criar o seu próprio estado, sendo posteriormente constestado pelos turcos que nunca o ratificaram. Em 1923 é assinado o tratado de Lausanne que reconhece as fronteiras modernas da Turquia e distribuído o restante território curdo pelos países fronteiriços.
A falta de um estado reconhecido internacionalmente fez com que as tribos se tornassem ainda mais importantes na estrutura primordial das comunidades curdas e tivessem um papel de relevo nas rebeliões que se seguiram, principalmente contra o estado turco e que resultaram numa onda de mortes e prisões da população curda.
Nos quatro estados em que foi integrado, o povo curdo foi submetido a formas estruturais de opressão, sendo-lhes negado o direito a expressar-se na sua língua, aceder às suas terras, participar politicamente na vida dos estados-nação, e até direitos de cidadania como a negação de um passaporte. Para as mulheres curdas isto traduziu-se numa dupla marginalização, fruto da opressão que já viviam dentro das estruturas patriarcais das suas comunidades, agora agravada pela opressão do estado-nação. A profunda opressão e repressão proveniente de políticas de estado do Iraque, Irão, Turquia e Síria moldaram profundamente as experiências e resistências das mulheres curdas.
O Curdistão Iraniano, que alberga entre 6 a 7 milhões de curdos e curdas, suprimiu muitas das revoltas curdas que resultaram de desejos independentistas e criação de um estado próprio e criou políticas que visavam a assimilação do povo Curdo na vida nacional do Irão. Ainda assim, o povo Curdo do Irão conseguiu criar um estado independente conhecido como República de Mahabad, por um período muito breve, compreendido entre 1946-47, apenas reconhecido pela Rússia e que rapidamente voltou ao domínio Iraniano.
Com a era de Reza Pahlavi, e o golpe militar de 1953, houve um crescimento do autoritarismo com a adoção de políticas de limpeza étnica que visaram especialmente a população curda no país e foi inclusivamente proibido o ensino da língua curda. Com a subida ao poder de Ruhollah Khomeini, em 1979, a repressão da população Curda aumentou, tendo sido até declarada uma guerra santa contra o povo Curdo, que culminou no controlo total das regiões curdas pelo estado.
No entanto, o povo Curdo ao longo da história, sempre se mobilizou e em 1945 foi fundado o partido mais representativo do povo Curdo no país, o Partido Democrático do Curdistão Iraniano (PDKI) que num ambiente de teocracia Islâmica conseguiu uma representatividade de relevo no parlamento, assim como coligações com outros grupos de defesa das identidades étnicas do país. O PDKI luta por um estado federal laico e dá relevo à luta pela igualdade das mulheres no ambiente político do Irão.
Devido à falta de interesse da academia e dos movimentos feministas pela situação das mulheres curdas até à década de 1990 e à repressão política e académica vivida no Irão, não existem análises profundas sobre a situação das mulheres curdas neste país, agravada pela falta de informação e liberdade de expressão. No entanto, as mulheres curdas fizeram e fazem parte da luta armada e resistência nacionalista nas montanhas de Zagros, lutando lado a lado com os homens e sendo assim visadas pelo aparelho repressivo do estado Iraniano. A prisão e tortura de Roya Toloui, uma ativista feminista e jornalista, e de Zeynep Celaliyan, uma activista política pela causa curda, são demonstrativas quer do envolvimento das mulheres na causa nacionalista quer da opressão genderizada dos estados-nação.
Os recentes protestos no Irão levaram à confrontação entre grupos de guerrilha Curdos e as forças de segurança Iranianas, com o Movimento de Mulheres do Curdistão Oriental (KJAR) a vir a público pedindo às mulheres que se unam aos protestos, pedido apoiado pelas mulheres curdas de Rojava, com esperança na propagação dos ideais do Confederalismo Democrático, que mencionarei adiante.
Também não podemos esquecer o papel das mulheres curdas que buscaram asilo político fugindo do Irão, e que durante anos organizaram a resistência curda na diáspora e fundaram organizações de apoio à mulher como Diana Nammi, mulher curda que buscou asilo no Reino Unido e ajudou a fundar a organização de apoio à mulher IKWRO (Iranian and Kurdsih Women´s Rights Organization), estando também para lançar brevemente o livro A girl with a gun, onde revela a sua experiência como peshmerga nas montanhas Curdas.
O Curdistão Iraquiano vive uma situação particular em comparação com o restante território curdo, já que vive uma autonomia de facto apoiada pelos Estados Unidos da América desde a invasão militar do Kuwait por Saddam Hussein, levando a autora Nadje Al-Ali (2016) a usar a expressão Kurdish Heaven (Céu Curdo) para descrever a melhoria da situação das mulheres curdas em relação às mulheres iraquianas, agravada pelas sanções económicas internacionais e pela invasão americana de 2003.
No entanto, o nacionalismo iraquiano sob o regime Ba´th, do qual Saddam Hussein fez parte, além de enfraquecer os direitos das mulheres em geral também marginalizou política, económica e socialmente as mulheres curdas em particular, que pagaram um preço elevado na perseguição ideológica do seu povo. Neste contexto, as mulheres curdas iniciaram a sua participação no movimento nacionalista apenas focadas na luta pelo reconhecimento dos direitos do seu povo sem procurar transformar as estruturas patriarcais e relações de submissão dentro da sociedade Curda (Al-Ali & Pratt, 2011).
A repressão e violência sistemática contra as mulheres curdas agravou-se durante a guerra entre o Iraque e o Irão, que além de empregar estratégias ideológicas de limpeza étnica e sectarismo religioso, promoveu a arabização dos territórios iraquianos do norte com vista à assimilação forçada das minorias étnicas. Durante este período, aos homens iraquianos foi-lhes pedido o abandono das suas mulheres iranianas, e que casamentos com mulheres curdas fossem consumados, ao mesmo tempo que a violação e tortura das mulheres curdas foi incorporada no endoutrinamento ideológico dos militares, humilhando e desonrando não só as mulheres mas também os homens das comunidades curdas, vistos como incapazes de as proteger.
A sociedade curda no Iraque era caracterizada por ser tradicional e tribal, onde a honra das mulheres é a honra da comunidade. Assim, eram recorrentes os casos de violência contra a mulher e de crimes de honra que culminavam em mortes (Honour Killings), assim como as práticas de Mutilação Genital Feminina (MGF) que visavam garantir a pureza sexual da mulher até ao casamento. A violência sexual de raiz ideológica perpetuada pelas forças iraquianas cumpria assim um duplo objetivo: humilhar as comunidades curdas que viam um ataque ao corpo da mulher como a violação dos seus códigos de honra; e atacar a sua integridade comunitária, já que as mulheres estavam na base da organização da vida em comunidade, cuidando das crianças e dos idosos e idosas, cuidando do cultivo das terras, preparando a comida e realizando as tarefas domésticas.
A situação era também particularmente grave dentro da minoria, a comunidade Curda Yazidi, que além de se reger por códigos de honra rígidos, apresentava ainda a particularidade de professar a religião ancestral dos curdos e não o Islão, e não praticava o corte das mulheres (MGF), fator que levava a comunidade a ser discriminada pela própria população curda além da discriminação e repressão sofridas pelo regime iraquiano.
Um dos períodos mais repressivos e violentos contra as mulheres curdas deu-se durante a campanha de Anfal, entre 1987-1988, que visou aniquilar a resistência curda, planeando cuidadosamente um programa de limpeza étnica estimando – se que entre 50 000 a 200 000 mil curdos e curdas foram mortos e que foram destruídas inúmeras aldeias curdas com os seus e as suas habitantes deportados/as para campos sem condições básicas, como o acesso à água, esgotos ou eletricidade, ou executados durante as tentativas de abandono das aldeias. Nestes campos a violação e tortura de mulheres curdas ocorreu de forma sistemática. Esta campanha também recorreu ao uso de armas químicas com efeitos a longo tempo tais como cancro, infertilidade e doenças congénitas. A detenção, tortura e violação de mulheres também serviu como punição para os familiares presos por razões políticas ou suspeitos de atividades de oposição ao regime.
Com o caos criado durante a invasão do Kuwait, a queda do regime Ba´th e a invasão americana, o Governo Regional Curdo (GRC) conseguiu atingir a maioria das suas aspirações de autonomia, criando uma área relativamente segura para a população curda, apesar da presença do Estado Islâmico e de conflitos internos envolvendo fações partidárias que dividiram o movimento de mulheres curdas. O programa de troca de petróleo por comida permitiu ao GRC contornar as sanções económicas que empobreceram o Iraque, já que o GCR mantinha o controlo de Kirkuk, uma região rica em poços de petróleo, e as regiões Curdas viveram uma prosperidade económica muito distante das condições miseráveis da restante população do país. Este ambiente político abriu espaço à incorporação das mulheres na política e, consequentemente, à incorporação das suas exigências de igualdade no GRC.
A ideologia do GRC é organicamente diferente da Ideologia de Abdullah Öcalan, já que os líderes tribais ainda têm uma grande influência na vida política da região e as diferentes fações políticas competem entre si para formar alianças com as estruturas tribais, o que enfraquece a posição das mulheres e das suas exigências de combate à violência familiar, já que elas são vistas como parte “da cultura Islâmica e tribal do Curdistão” (Al-ALi & Pratt, 2011). Numa tentativa de criar oposição a esta visão e distanciar-se dos movimentos nacionalistas que a defendem, as mulheres curdas da região têm trabalhado num enquadramento legal que consagre uma sociedade laica e que rejeite a instrumentalização política do Islão. Estes esforços deram frutos quando a constituição regional foi adotada reconhecendo que o Islão não deve servir como fonte de legislação ou enquadramentos legais. O fato de que a constituição Iraquiana não reconhece este princípio demonstra como as mulheres curdas beneficiaram da participação na luta nacionalista.
Ainda assim, estas conquistas fizeram muito pouco na defesa das mulheres yazidis na região. Com as unidades de peshmergas do GRC a retirarem-se das aldeias yazidis devido à crescente ocupação do Estado Islâmico e à pressão sentida pelo GRC para lidar com o crescente número de refugiados/as curdos/as vindos da Síria, enquanto a braços com oposição interna, as comunidades yazidis foram deixadas à sua sorte e as mulheres alvo das mais horríficas formas de violência. No entanto, este facto não pode apagar as lutas e conquistas das mulheres curdas no Iraque, já que as mulheres têm estado na luta contra a corrupção, falta de transparência, autoritarismo e sectarismo enquanto advogam por mudanças na sociedade e combatem a cumplicidade dos políticos na sua opressão, providenciando ainda serviços de apoio a outras mulheres, num contexto de instrumentalização constante das suas lutas por parte do governo regional. Apesar da consciência da sua instrumentalização e das tentativas de impor um feminismo de estado, as mulheres curdas reconheceram que a opressão tem que ser combatida dentro do GRC já que “as aspirações nacionalistas de soberania popular estimulam uma extensão dos direitos de cidadania, claramente beneficiando as mulheres” (Kandyioti,1991).
A recente crise no GRC devido a aspirações de independência que culminaram num referendo, e que levou os Estados Unidos a retirarem o seu apoio ao governo regional e à ocupação militar das zonas curdas por parte do governo Iraquiano, aumentaram a intensidade dos protestos internos com pedidos de mudança política e ideológica. Aos protestos aliaram-se ainda as vozes yazidis que vêem Masoud Barzani, chefe do GRC até ano passado, e adepto de um estilo presidencial, como parcialmente culpado pela sua situação. De salientar que as mulheres peshmergas sírias deslocaram-se para as zonas curdas do Iraque não só para combater o Estado Islâmico mas também para ensinar autodefesa e doutrinar as mulheres yazidis na ideologia do Confederalismo Democrático como estratégia de empoderamento. Com isto, as mulheres yazidis têm reforçado o seu ativismo dentro do GRC e, quem sabe, terão lançado as sementes para a mudança ideológica da região curda do Iraque.
O Curdistão Sírio também partilha uma história de opressão e repressão política. A Síria conseguiu a sua independência em 1946 e, como retaliação pelo apoio da população curda à França, submeteu a população curda a trabalhos forçados, apoderou-se das suas terras, proibiu a língua e cultura curda, e aumentou a presença militar e vigilância nas zonas curdas para impedir que curdos e curdas se organizassem politicamente. Uma das maiores estratégias de retirada de cidadania e direitos à população curda na Síria aconteceu nos censos de 1962, em que muitos curdas e curdos se tornaram apátridas devido à recusa em reconhecer a sua etnia. A par com estratégias utilizadas pela Turquia e Irão, o regime Sírio propositadamente empobreceu e não desenvolveu nenhum tipo de infraestruturas, incluindo hospitais, nas zonas curdas, como estratégias de discriminação étnica em relação ao povo Curdo. A partir de 1973, a Síria pôs em prática um plano estratégico de arabização das zonas curdas, confiscando terras que a população curda cultivava e incentivando a população árabe a deslocar-se para as a ocupar. O plano de arabização prolongou-se até à guerra civil.
Tal como acontece com o Curdistão Iraniano, o papel das mulheres curdas na resistência nacionalista no Curdistão Sírio está muito pouco documentado devido à falta de informação e ao desinteresse da academia e dos movimentos feministas até à eclosão da guerra civil. No entanto, as mulheres estiveram presentes no combate ao regime de Assad e integraram os movimentos de resistência organizando protestos, exigindo uma mudança democrática e providenciando assistência humanitária.
O Curdistão Sírio é hoje uma região autónoma de facto à semelhança do Curdistão Iraquiano, mas com bases e premissas ideológicas muito diferentes. A retirada das forças afetas ao governo sírio dos cantões de Afrin, Jazira e Kobane permitiram que o seu controle passasse para as mãos das unidades de proteção popular (YPG) formadas por partidos nacionalistas curdos que até então agiam na clandestinidade. A região é governada segundo os princípios do Confederalismo Democrático, promovendo a democracia directa, e ecologia social e a emancipação das mulheres, processo ideológico e político promovido pelo Partido da União Democrática (PYD), influenciado e com fortes ligações ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) na Turquia.
Foi aliás na Turquia, que alberga metade da população Curda que vive nos territórios do Curdistão, e através do PKK, que a resistência Curda se organizou e não se pode, efectivamente, analisar a situação das mulheres curdas ou a implementação do Confederalismo Democrático na Síria sem olhar para a história da resistência curda na Turquia.
A Turquia, ao contrário de outros processos de construção de estados-nação na região do Médio Oriente, tinha um projeto de modernização do país que passava pela implementação de uma sociedade e governo laicos, o que não impediu que estratégias de limpeza étnica fossem usadas contra as minorias étnicas. A construção do estado Kemalista, baseado nas ideais de kemal Ataturk, considerando o “pai fundador” da Turquia, tentou suprimir todos os aspetos da cultura e identidade étnica curda, vistos como entraves à construção de uma identidade nacional homogénea. Apoiado nas políticas sobre a proteção de minorias do Tratado de Lausanne que apenas se estendiam a minorias religiosas e a uma herança Europeia que via o ser muçulmano/a como uma categoria identitária homogénea, Ataturk, focou-se particularmente no povo Curdo, por ser a maior minoria étnica do país e localizar-se maioritariamente numa região rica em recursos naturais. A extensão ideológica do projecto Kemalista sente-se até aos dias de hoje na Turquia quer a nível político quer a nível social, contribuindo assim para a cristalização do nacionalismo Curdo.
O facto do projeto kemalista ser de natureza laica não preveniu a instrumentalização das mulheres na construção do novo estado-nação, atribuindo-lhes também a tarefa de representar a honra da nação através da sua modernização. O projeto Kemalista aboliu a poligamia, os casamentos infantis, permitiu às mulheres o divórcio e os direitos maternais, garantiu o direito à herança e o direito ao voto, mas não alterou os códigos morais herdados do império Otomano, mantendo o conservadorismo nas relações entre homens e mulheres, apesar da abertura do espaço público e político às mulheres turcas. A igualdade foi apenas atingida em termos legais, o que permitiu a paz social e a instrumentalização do discurso dos direitos das mulheres para a construção e manutenção de uma identidade nacional. Assim sendo, assistiu-se a uma implementação do feminismo de estado que excluía movimentos de mulheres de minorias étnicas e religiosas autónomos e críticos do estado. A emancipação legal da mulher turca foi feita em simultâneo com o desmantelamento estratégico da identidade curda, o que resultou na dupla marginalização das mulheres curdas, quer pelo estado quer pelas mulheres turcas que acreditavam que o ser mulher era a única categoria necessária para criar unidade. Muitas destas mulheres viram as mudanças legais implementadas pelo estado turco como positivas, tornando-se difícil desenvolver qualquer capacidade crítica à atuação do estado e levando muitas mulheres a convergir com o estado na criação de uma identidade nacional homogénea que privilegiava essencialmente as mulheres das elites urbanas. As mulheres rurais ou provenientes de minorias étnicas foram amplamente discriminadas, em particular no acesso à educação, que só estava disponível em língua turca. Este pormenor atinge particular relevância se pensarmos que além de dificultar o acesso à educação, os mecanismos legais de proteção criados também lhe estavam vedados. A maioria das mulheres curdas, por exemplo, tinham casamentos religiosos em vez de oficializados pelo estado, estando assim de facto excluídas dos mecanismos legais que reconheciam a igualdade de género, já que as suas uniões não eram reconhecidas pelo estado contribuindo ainda mais para a sua marginalização.
As mulheres turcas falharam em reconhecer a opressão e marginalização das mulheres curdas devido à sua identidade étnica, uma vez que a única identidade reconhecida era a de ser mulher. Em vez de utilizar a sua posição maioritária para questionar o estatuto destas mulheres, as mulheres turcas contribuíram significativamente para discriminação étnica das mulheres provenientes de minorias. Além disto, o fator de classe também era negligenciado, um fator de relevo devido ao empobrecimento estratégico das zonas curdas na Turquia e ao baixo estatuto social das mulheres curdas. Estes comportamentos, vistos como opressores, afastaram as mulheres curdas dos movimentos de mulheres.
Além da opressão sentida pelo estado e pelos movimentos de mulheres turcas que não lhes reconheciam a sua dimensão étnica, as mulheres curdas tinham que lidar com uma sociedade curda com crenças e práticas patriarcais assente em visões tradicionalistas e religiosas sobre o papel da mulher, contribuindo para a aceitação do papel subalterno dentro da sua própria comunidade e aceitação dos códigos de honra sociais e familiares vigentes em troca de proteção. O empobrecimento estratégico das zonas curdas e a opressão sentida pelas mulheres resultou numa maior união entre as comunidades curdas e contribuiu em larga escala para a mobilização nacionalista, resultando em várias rebeliões curdas, aniquiladas pelo exército turco e que resultou na morte, tortura e violação de várias mulheres curdas. Nas últimas décadas do século XX reavivou-se o movimento nacionalista nas zonas curdas empobrecidas que devido à modernização da sociedade turca e às mudanças socioeconómicas trazidas pela adesão ao capitalismo, sofreu um processo de proletarização. A juventude curda que migrou para os centros urbanos foi politizada pelo Partido Trabalhista Turco, que reconhecia a sua opressão e identidade étnica. Este partido foi encerrado após o golpe de estado de 1971, o que forçou os activistas de esquerda a operar na clandestinidade e contribuiu para a radicalização dos movimentos nacionalistas curdos.
Em 1978, o movimento nacionalista curdo forma o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), com o objectivo de criar um estado socialista independente, e que viria a sobreviver ao golpe de estado de 1980 que destruiu a maioria das organizações radicais de esquerda a operar na Turquia. O PKK tornava-se assim o mais importante movimento de defesa da causa curda, com uma influência e reconhecimento que ia muito além da Turquia. O PKK defendia um projeto ideológico secular e moderno, baseado na ideologia marxista-leninista, que visava não só combater o estado turco mas também as estruturas feudais que ainda operavam na sociedade curda, caracterizando as relações de parentesco e familiares com base tribal e as relações comunitárias e religiosas que impunham códigos sociais de honra como resquícios da Idade Média e que colocavam obstáculos à obtenção da igualdade social. A percepção da desigualdade da mulher na sociedade curda nasce deste contexto, mas foi também utilizada como estratégia de mobilização e recrutamento para a causa nacionalista (Yuksel, 2006).
Apesar da sua adesão ao nacionalismo Curdo, as mulheres ainda eram vistas como inferiores dentro do movimento e tinham que lidar com o machismo dos companheiros que ainda as viam através do papel subalterno que tinham nas suas comunidades e famílias. Muitas ativistas curdas, como Gultan Kışanak, antiga presidente do munícipio de Dyarbakyr no Curdistão Turco, referem que o sexismo e misoginia dentro do movimento nacionalista curdo eram tão maus e opressivos como a repressão sofrida pelo estado turco. Curiosamente, foi a sua politização como curdas que fez as mulheres questionarem a opressão sofrida dentro do movimento. A politização e doutrinamento ideológico das mulheres dentro do PKK era uma ferramenta essencial para as necessidades de recrutamento e mobilização do partido devido aos seus desejos de crescimento. Na década de 1980, o PKK reforça a sua luta armada enquanto se transforma num movimento político de massas. Aliada à liderança carismática do seu líder, Abudallah Öcalan, o partido inicia uma estratégia bem sucedida de recrutar e mobilizar as mulheres, já que as reinvindicações de igualdade de género faziam parte do enquadramento ideológico do partido desde a sua formação. Na década de 1990, um terço das milícias curdas era constituído por mulheres, ainda que vivessem num contexto amplamente patriarcal.
Como em muitos projetos de estado-nação, o movimento nacionalista curdo instrumentalizou as lutas das mulheres para a sua causa. A partir da década de 1990, há uma mudança de discurso na doutrina ideológica do partido e o discurso marxista-leninista é substituído pelo discurso da emancipação das mulheres, permitindo ao partido aproveitar o potencial revolucionário das mulheres, já que estas tinham todas as razões para lutar contra as estruturas patriarcais que perpetuavam a sua opressão (Çağlayan, 2012). O recrutamento para a causa nacionalista, em particular para causa militar, era dificultado não só pela adesão das mulheres aos códigos de honra das suas comunidades, mas também pela resistência dos homens em abandonar as suas famílias para aderir à luta nas montanhas. Öcalan entendeu que teria de combater os códigos de honra profundamente enraizados na cultura curda e embarcou num discurso profundamente crítico para com as estruturas patriarcais tribais, assim como para com os papéis de género que atribuíam à mulher o dever de representar a honra da comunidade e destinavam aos homens o dever de protegê-la. Öcalan inicia assim o desenvolvimento da nova cultura curda (New Kurdishness) em oposição à “velha cultura”, à “velha família” que visava sobretudo atacar as elites e estruturas feudais curdas vistas como aliados do estado colonizador, a Turquia. A nova identidade curda só poderia ser alcançada através do abandono da noção de família, que por sua vez permitiria abandonar os códigos de honra. O líder curdo defende no seu livro “A mulher e a questão familiar” (1999) que a família reduz a mulher à esfera privada, promove a sua dependência em relação aos homens da família, faz dos códigos de honra um fetiche, resultando na inferiorização das mulheres na sociedade. A família é assim vista como um obstáculo à revolução e o apego emocional como contrário ao socialismo, já que conduz a uma espécie de escravatura dentro da sociedade curda que por sua vez já é escravizada pelo estado opressor. Para atacar a noção de honra, Öcalan tentou ressignificá-la, acusando os homens de querer controlar a sexualidade das mulheres e estas de usar a sexualidade para “prender” emocionalmente os homens. Na nova cultura curda a honra estaria associada à defesa da nação, acusando homens e mulheres de nada fazer para proteger a honra da nação quando esta estava a ser repetidamente violada. Os códigos de honra passam assim a ser positivos para a nação, mas não para as mulheres, tentando suprimir as barreiras que as impediam de aderir à luta armada. Apesar da relação ainda existente entre o corpo da mulher e a nação, esta mudança de paradigma foi extremamente importante na medida em que permitiu às mulheres sair do espaço privado.
O papel de género na nova identidade Curda também criou novas conceções de feminilidade e masculinidade, providenciando novos critérios para o que era ser mulher curda e homem curdo, em linha com as estratégias de mobilização do PKK. Estas novas identidades faziam uso dos afetos, já que era dever de ambos os géneros lutar pela libertação nacional e o sucesso nessa luta era a condição essencial para se livrarem da velha identidade curda, assim como para serem merecedores de amor. A condição essencial para esse amor seria a liberdade, apenas alcançada com a libertação nacional. As mulheres modernas seriam “detentoras da sua identidade” (Öcalan, 1999) e os seus deveres e responsabilidades seriam expressos na dicotomia amor e vitória, que não poderiam existir um sem o outro. Assim, seria necessário substituir o amor sexual pelo amor à nação, já que “o amor tem que ser totalmente focado na política e na marcha rumo à vitória” (Idem, ibidem). As relações de amor que não se focassem no amor pela nação eram transgressoras, criando assim novos códigos de honra, já que às mulheres lhes era permitido ocupar o espaço público, mas sob novas formas de controlo. Silvia Walby (cit in Çağlayan, 2012) fala assim numa passagem de uma forma de patriarcado privado, no seio familiar, para um patriarcado público, no seio da sociedade, que com os projetos de modernização do estado-nação exigiam a participação económica e social das mulheres, enquanto lhes continuavam a destinar o dever de representar a cultura da nação.
Este discurso, a par com a criação de milícias inteiramente constituídas por mulheres, visava não só mobilizar as mulheres como também des-sexualiza-las, condição essencial para convencer as famílias a autorizar a adesão das mulheres à luta armada e permitir aos homens que apenas se focassem em proteger a honra da nação sem preocupações em relação à proteção das mulheres. No entanto, é necessário salientar que Öcalan acreditava que a militarização das mulheres era um meio de atingir a igualdade.
A par com esta mudança de paradigma também se viu uma mudança de discurso em relação à história identitária do povo Curdo, particularmente através da resignificação dos seus mitos e lendas, constituindo-se o passado lendário dos curdos como uma sociedade matriarcal que operava num sistema de socialismo primitivo em que as mães e as mulheres tinham um papel fundamental (Öcalan, 2011). Este processo, também utilizado em outros projetos nacionalistas, pode ser melhor explorado na passagem da adoração de Kawa, um homem lendário ligado à festa mais importante do calendário curdo – o Newroz, para a deusa Ishtar, proveniente da palavra curda estrela, que representava a essência da feminilidade curda. Esta mudança, que incentivava as mulheres a atingirem o estatuto de deusa, acentuou-se particularmente depois do suicídio de Zilan (nome de código de uma activista curda) em 1995, que matou também diversos soldados turcos, promovendo o auto-sacrifício em prol da nação. Zilan tornava-se assim numa deusa dos tempos modernos e símbolo do que as mulheres teriam de atingir para conseguir tal estatuto (Çağlayan, 2012). As mulheres podiam atingir assim o estatuto de mártir até então apenas atribuído aos homens. Apesar da instrumentalização notória da história, é importante notar que esta mudança providenciou às mulheres um sentimento de pertença à nação e permitiu-lhes ocupar um papel de relevo, não só no futuro imaginado da nação mas também no seu passado comum, já que o nacionalismo nasce essencialmente de “memórias masculinizadas, humilhações masculinizadas e esperanças masculinizadas” (Enloe, 2003).
É também a partir dos finais da década de 1990 e com a introdução dos ideais do que viria a ser chamado de Confederalismo Democrático, que as mulheres ganham uma consciência crescente da sua instrumentalização, apesar de verem o nacionalismo como uma trajetória legítima para a sua emancipação. Assim, as mulheres curdas criaram uma série de organizações e mecanismos autónomos, criaram as suas próprias estruturas políticas e militares sem hierarquias masculinas, o que lhes permitiu a articulação das suas exigências enquanto mulheres e enquanto curdas. Muitas dessas estruturas assumem até hoje um papel fundamental na organização da resistência curda. A crescente visibilidade das mulheres no movimento nacionalista curdo também se fez notar no número de mulheres que integraram os primeiros partidos políticos pró-curdos constituídos legalmente, como o Partido Democrático dos Povos (HDP), que se baseia nos ideais do Confederalismo Democrático para difundir as suas ideias.
A posição da mulher curda, como em outros projetos nacionalistas, não era independente do projeto de modernização da nação, mas o novo ideal político de nação sem estado é baseado em grande parte na emancipação da mulher, dando-lhes o poder de estabelecer os princípios dessa emancipação que se devem estender também aos homens e não o contrário, apesar do princípio fundamental continuar a ser a defesa da nação. Este ambiente contraditório tem o potencial para produzir mudanças positivas dependendo do papel que as mulheres decidem assumir enquanto atacam estas contradições.
O Confederalismo Democrático e a Jinealogia
Após a prisão do líder curdo Abdullah Öcalan em 1999, e com uma certa abertura da Turquia à livre expressão da cultura curda promovida pelas aspirações de adesão à União Europeia, assim como a crescente emancipação das mulheres curdas, lançam-se as bases para a promoção do Confederalismo Democrático enquanto ideologia política da nação, que abandona o ideal da criação de um estado. O ideal passa a ser a construção de uma zona regulada por democracia direta que respeite a diversidade étnica e religiosa do Médio Oriente. Öcalan abandona o termo Médio Oriente, que tem conotações ocidentais e está por detrás de interesses imperialistas e geo-políticos, e passa a referir-se à Mesopotâmia, numa alusão à convivência étnica existente na região antes da imposição de fronteiras.
De acordo com Öcalan, o Confederalismo Democrático é um projeto político “aberto a grupos e fações políticas. É flexível, multicultural, anti-monopolístico e orientado pelo consenso” (2011). Profundamente influenciado pelo trabalho de Bookchin sobre municipalismo libertário, Öcalan desenvolveu um sistema político baseado no anarquismo, marxismo, socialismo e feminismo tendo como pilares a ecologia social e emancipação das mulheres. O Confederalismo Democrático parte de uma perspectiva socialista que se opõe à modernidade capitalista e apesar de ir buscar inspiração às teorias anarquistas, defende formas de organização popular através da democracia sem estado. Esta organização deve ser feita em pequenas localidades para permitir a democracia directa e devem ser criados comités administrativos de acordo com as necessidades de cada localidade.
Este sistema político parte da premissa de uma relação existente entre opressão de género e formação do estado-nação, assente na adoção de religiões monoteístas e políticas capitalistas, que privilegiam a masculinidade, e da necessidade de criar um sistema político capaz de ultrapassar esta simbiose. Assim dá-se a criação da Jineologia (a ciência da mulher em Curdo), um enquadramento analítico feminista radical que pretende transferir para as sociedades os avanços alcançados pelo movimento de mulheres curdas e que critica as ciências positivistas por monopolizarem todas as formas de poder e de conhecimento em contextos predominantemente masculinos, pretendendo assim construir um novo paradigma metodológico que contraste com sistemas androcêntricos de produção de conhecimento. Paralelamente, a Jineologia também é um sistema que critica o feminismo ocidental, acusando-o de ser demasiado académico e busca parelelos com correntes do feminismo negro e do feminismo anti-colonial que visa empoderar as mulheres desde a base. A Jinealogia vê o feminismo ocidental como cúmplice nos valores democráticos atuais, baseados no capitalismo, que não pretende transformar a sociedade mas apenas atingir uma igualdade de género vazia de conteúdo, já que a mercantilização de direitos básicos assim como do corpo das mulheres não é combatida, o que também é uma das críticas de muitos movimentos feministas ao feminismo liberal em concreto. Contudo, a Jineologia não pretende ser uma alternativa ao feminismo, mas antes o reconhecimento de que uma abordagem feminista não abarca a abordagem holística necessária à mudança na região. A Jineologia tornou-se num dos pilares de suporte ao Confederalismo Democrático uma vez que tem o potencial não só de politizar as mulheres, mas também de as organizar para a mobilização política necessária à difusão ideológica.
O Confederalismo Democrático está a ser implementado na região de Rojava, na Síria, que compreende os cantões de Afrin, Jazira e Kobane onde as forças curdas decidiram pôr em prática esta ideologia política criando um sistema de democracia sem estado e assente na paridade de género em todas as estruturas administrativas, assim como na diversidade étnica e religiosa. Rojava, que ficou mais conhecida pelas imagens das guerrilheiras curdas que combatiam o Estado Islâmico após a retirada das forças sírias da região, carecia de todas as infraestruturas necessárias ao funcionamento das comunidades devido à destruição provocada pela guerra. As mulheres tiveram um papel determinante não só na defesa e proteção da população local como também na criação de infraestruturas e organização das comunidades, trabalhando em prol da construção de cooperativas, escolas, bibliotecas e academias e na promoção da economia feminista; assim como na promoção de um novo sistema de justiça que pretende abolir o castigo e na formação feminista e de resolução de conflitos das forças de segurança, apesar de a longo prazo o Confederalismo Democrático prever a eliminação da polícia. O modelo económico de Rojava é assente em pequenas unidades de produção e na venda de petróleo para ultrapassar os diversos embargos e recusas de ajuda humanitária de que é alvo.
Podemos argumentar, que embora em diferentes formas e graus, o Confederalismo Democrático também utiliza as mulheres para a construção de uma visão genderizada de nação pois a emancipação das mulheres é vista como a libertação da nação. No entanto, o Confederalismo Democrático difere dos processos burgueses de construção do estado nação, na medida em que esta ideologia se define através da luta pela igualdade étnica e convida as mulheres a lutar lado a lado com os homens.
A ideologia suscitou interesse desde que as guerrilheiras das unidades de proteção (YPJ) travaram uma luta de combate ao Estado Islâmico e ganharam simultâneamente a admiração de muitos movimentos de esquerda e a crítica de alguns movimentos feministas.
O aparecimento do Estado Islâmico e a participação militar das mulheres curdas
A onda de violência, particularmente violência sexual, que atingiu as mulheres yazidis, e as mulheres curdas, nas zonas tomadas pelo Estado Islâmico fizeram muitas manchetes de jornal e chocaram o mundo. O Estado Islâmico, surgido de resquícios da Al-Queda e impulsionado pelo caos criado com a invasão militar do Iraque e Afeganistão pelos Estados Unidos e da sua estratégia da Guerra ao Terror (War on terror), aspirava à criação de um califado, através da politização da corrente sunita do Islão e da arabização. O crescimento do Estado Islâmico (ISIS) aproveitou-se ainda das guerras civis que eclodiram no rescaldo das primaveras árabes e dos movimentos sectários e grupos de milícias daí resultantes. Neste contexto, a população curda tornou-se um alvo a abater já que o povo Curdo não se identifica como árabe. Assim, a população yazidi acabaria por se tornar o maior alvo, pois além de não ser árabe também não professa o Islão.
A brutalidade do ISIS visou maioritariamente as mulheres e a violência sexual das suas milícias foi vista como um produto quer da sua masculinidade tóxica, quer da sua ideologia política. Contudo, a violência sexual contra as mulheres perpetuada pelas milícias afectas ao ISIS, é profundamente ideológica e surge de um continuum de violência contra as mulheres curdas antes do conflito (Al-Ali, 2016; Cockburn, 2004), já aqui discutido. É importante salientar que que a violência perpetuada contra as mulheres ao longo da história da região se baseia em “configurações macroestruturais de poder relacionadas com imperialismo, neoliberalismo e globalização de um lado, e com expressões locais do patriarcado, interpretações religiosas e práticas e normas culturais por outro” (Al-Ali, 2016). A violência sexual é usada como estratégia de desumanização das mulheres por vários atores políticos tais como, regimes ditatoriais, intervenções e invasões militares, agendas neoliberais entre o Ocidente e o Oriente ou projetos de limpeza étnica. O ISIS é assim produto de uma combinação de sectarismo religioso, autoritarismo e glorificação da militarização que constrói novas concepções de masculinidade com o potencial de aumentar ainda mais a dimensão dos atos violentos. Assim sendo, a violência sexual torna-se numa estratégia de recrutamento de milícias bastante eficaz, utilizando a jihad al nikah (relações sexuais em prol da luta) como justificação ideológica das suas atrocidades. Ocorrências de violência sexual perpetuadas contra as mulheres e também contra homens que não correspondam ao ideal de masculinidade, são um mecanismo fundamental na estratégia do ISIS de impôr uma masculinidade militarizada e exercer o domínio político das zonas que controlam.
Apesar do reconhecimento das atrocidades praticadas contra estas mulheres, muito pouco foi posto em prática para as proteger, quer pelas autoridades locais, quer pela comunidade internacional, sendo necessário entender que neste contexto a militarização das mulheres acontece mais por necessidade de proteção das suas comunidades e de si próprias do que por razões ideológicas. Este contexto, contudo, não evitou nem a objetificação das brigadas do YPJ pelos mídia, nem as críticas de movimentos feministas ocidentais.
A forma como as guerrilheiras curdas foram retratadas em muitos dos órgãos de comunicação social mainstream, além de objetificar os seus corpos e transformá-las em amazonas de arma ao ombro, reforçou a visão de anormalidade (abnormality) destas mulheres, já que as mulheres estão, por norma, ligadas a trajetórias pacíficas e rejeitou as suas experiências de violência e opressão dos estados-nação em que se incluíam, o que as levou a aderir à luta armada em primeiro lugar (Alsaafin, 2014). A sugestão de que a adesão à luta armada não é mais do que uma expressão de agressão sexual transforma estas guerrilheiras numa ameaça à masculinidade, uma vez que tal visão sugere a inaptidão dos homens para defender as mulheres e atribui características como “o desespero, a irracionalidade, ou confusão às militantes Curdas… que servem para deslegitimar as suas lutas” (Dirik cit in Alsaafin, 2014).
Apesar disto, alguns movimentos feministas ocidentais também vieram a público criticar a adesão à luta armada e acusar as mulheres de compactuar com a sua instrumentalização ideológica. Acusar as mulheres curdas, no seu combate contra as atrocidades do ISIS, de embarcar numa resistência genderizada com vista à emancipação apenas contribui para os estereótipos de vitimização e de mediadoras pela paz atribuídos às mulheres, enquanto lhes “retira a sua agência política” (Tank, 2016). Também o feminismo académico que se debruça sobre a ligação entre mulheres e nacionalismo adota modelos analíticos limitados à vitimização e participação das mulheres nos processos de paz. Como Al-Ali (2016) nos lembra “apelar a soluções pacifistas e resistência não violenta perante as atrocidades do ISIS é um absurdo”. Foram as suas experiências de perseguição étnica em sociedades militarizadas e as suas necessidades de auto-defesa que levaram as mulheres a reclamar um espaço na luta armada, abrindo espaço a redefinições de relações de género e do seu papel no seio das suas comunidades. Apesar de ser precoce uma avaliação de como o Confederalismo Democrático e a adesão à luta armada emancipou as mulheres, de facto, torna-se importante referir que o projeto em marcha é o mais progressista e consciente em relação ao género que apareceu na arena política nos últimos anos na região.
Assim sendo, torna-se fundamental responder aos apelos de solidariedade feminista transnacional que nos chegam das mulheres curdas, começando por reconhecer o difícil contexto em que estas mulheres se movem diariamente para a construção de uma alternativa política ajustada às suas necessidades e reconhecendo outras formas de organização política que não passem por um modelo de estado e que não conseguem ir além das visões da lógica do estado-nação como garantia de atribuição de direitos às mulheres. É ainda importante o reconhecimento da luta armada em contextos de extrema violência como estratégia de autodefesa e como forma de combater a perpetuação do ideal de que a defesa das mulheres é responsabilidade dos homens – ideal que perpetua não só a dívida patriarcal das mulheres em relação aos homens, mas também a imposição dos ideais vigentes de feminilidade.
A nível internacional, as mulheres curdas têm desempenhado um papel fundamental na promoção da causa curda, promovendo a ideologia do Confederalismo Democrático, organizando oficinas de Jinealogia, organizando conferências, participando na produção de conhecimento académico e denunciando a perseguição política de que o seu povo é alvo, sendo por isso tempo de as feministas criarem redes de solidariedade e desenvolverem formas de participação com estas mulheres.
Uma rede de solidariedade feminista transnacional pode começar por exercer pressão nos seus respetivos governos sobre o abuso dos direitos humanos na região, o seu silêncio em relação ao estado turco e deterioração da democracia, assim como ao seu financiamento do ISIS para conter o progresso da ideologia política curda e exigir o fim da impunidade da violência sexual e étnica perpetrada por vários atores, desde o ISIS, passando por forças de segurança locais, chegando às forças de segurança internacionais (Al-Ali,2016).
Vania Martins
*Programa de Estudos de Género na Ásia, África e Médio Oriente na Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS), Universidade de Londres, presentemente a escrever a tese: “Instrumentalization and Violence: Politicization as Resistance in the Kurdish Women´s Movement”.
**Comité Internacional da Marcha Mundial de Mulheres
Imagem: Kurdish struggle. Alguns direitos reservados.
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Publicado originalmente em http://acontradicao.pt/mulheres-curdas-da-opressao-a-resistencia/?fbclid=IwAR2r_vCwVnBE_IwQwkRvnt0cD88iCZZE8kp0R1VKNCinbkIYtuQ2J_xPqmY